A fotopintura e
suas transformações, arte modificada pelas novas tecnologias alcança publico
internacional através das obras do mestre Júlio.
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Capa do Livro: Júlio
Santos, mestre da Fotopintura.
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Uma fotopintura dos pais falecidos, a lembrança da mãe e a
dedicação que ela tinha com as fotografias na infância dos filhos, o momento
mais importante para um jovem casal feito a mão e o mestre que deixa pra trás as tintas, cavaletes, e tela de
pintura por outra tela, agora a do computador. Do saudosismo para o mundo, o
retrato pintado ainda vive, modifica-se e se adapta às novas tecnologias.
Mestre da Cultura Popular,
Júlio Francisco dos Santos, 68 anos, é fotopintor com aproximadamente 56 anos de
experiência. Iniciou a profissão muito
jovem, deixou para trás os estudos no mosteiro beneditino em Pernambuco e
escolheu trabalhar junto com o pai e seu amigo Antenor Medeiros, que, segundo Júlio,
foi o maior retocador que conheceu na vida.
O ateliê montado na casa da
vó foi o começo da carreira promissora do fotopintor, mas ele conta que teve
dificuldade na hora da escolha. “Você deixa de ser um monge beneditino pra
trabalhar com fotopintura, você tem que dar uma resposta pro seu pai, você tem
que dar tudo pra ser o melhor”, lembra.
Aos 15 anos de idade, Julio
já dominava todas as etapas do processo: reproduzir, contornar, ampliar,
retocar, afinar, fazer roupa. Ele explica que esse processo de “linha de
produção” era a forma que as pessoas trabalhavam.
O
tempo passou modificando os métodos do retrato pintado. Antes se tinha um
ateliê e ajudantes, aos quais se ensinava a técnica da fotopintura. As
ferramentas necessárias para desenvolver o trabalho como pincéis, espátulas,
tintas e telas sofreu alterações, substituídos por um computador, outra tela e
um programa de edição.
Ele fala que teve receio: “eu
resistia por uma questão de saudosismo natural, toda mudança traz um problema”. Além
da questão social, já que antes se passava as técnicas do trabalho para os
jovens e assim dava-se continuidade ao processo, os ‘novos profissionais’ que
desconhecem a técnica tendem a descaracterizar o processo de criação. Ele fala
com certo de desgosto , “são pessoas que montam, cortam um retrato, põe um
palito, me perdoe a fraqueza, mas sem muita proporção”, e com isso surge o
problema que ele tanto temia, “a descaracterização do trabalho, você tá fazendo
hoje fotomontagem”.
Exemplo|
No interior do estado a
fotopintura faz parte da característica do sertanejo, dentre varias imagens,
entre fotos dos filhos e imagens sacras está sempre presente a foto dos pátriarcas
da família.
“Olhar
pra foto deles me traz muita saudade”. A aposentada Luzelite da Cunha, 56, fala
emocionada ao olhar para o retrato dos pais. “A mamãe até que parece com a foto
original, mas papai não”. A foto original a qual a senhora se refere é uma fotografia
preta e branca danificada; a ‘fotopintura’ foi feita recentemente. “Passou um
rapaz na minha casa oferendo o serviço e eu aceitei na hora, o quadro que tinha
na casa da minha mãe lá no interior foi levado por um dos meus irmãos quando
ela faleceu, a lembrança que pude ficar foi essa fotinha gasta”.
Um dos principais motivos de
ter aceitado fazer o serviço também foi o baixo preço cobrado. “Não ficou tão
boa, mas o importante é o sentimento”, justifica.
Rejeição|
Lucia Maria Ferreira,
zeladora da Escola Liceu do Ceará, de 53 anos, lembra da mãe arrumando-a para
as fotografias. Quando perguntada se ainda possui alguma, ela confirma
balançando a cabeça, mas explica que desconhece seu paradeiro: “eu me mudei
acho que ficou na outra casa, eu já tinha esquecido dessa foto.”
“Quando eu era criança,
minha mãe mandou fazer uma fotopintura, não só minha, mas dos meus irmãos também,
aquilo era importante pra ela”, relembra
“Como não tinha foto
colorida naquele tempo, ela sempre que dava fazia uma pintura.” Ao ser questionada
se tem vontade de fazer uma fotopintada dela com os filhos, e a resposta é
rápida: “Eu até que gostaria, mas não posso. Minhas filhas não gostam, elas não
deixam sequer eu por as fotos delas de quando eram crianças na parede quanto
mais uma fotopintura”.
Existe uma rejeição dos que
desconhe-cem a tradição popular da fotopintura. Júlio fala que o problema é a
falta de cultura da própria população. “Dentro
do estado eu não tenho reconhecimento. Se você tivesse sem o endereço, você não
encontraria, as pessoas não me conhecem”.
A
menção honrosa de mestre da cultura veio depois de muitas tentativas. “Pra você
ter uma ideia eu tentei varias vezes ser mestre da cultura e em alguns momentos
eu não cheguei a ficar se quer entre os reclassificáveis”.
Tradição|
O fotografo Tiago Santana é
parceiro de trabalho, amigo e cliente do retratista Julio Santos. “Eu fiquei
apaixonado pelo trabalho dele”, diz. Tanta paixão que os convites de casamento foi
um retrato feito por Júlio.
“Na época eu ia me casar e
queria que o convite fosse uma homenagem ao trabalho dele, então o convite
fechado era duas fotos emolduradas separadamente e quando você abria o convite
tinha os dois juntos em uma moldura só”.
Com uma voz animada o fotógrafo
faz uma comparação entre a sua fotopintada e de tantos outros sertanejos: “Até
hoje eu tenho na minha casa, assim como em milhares de lugares você vai ver nas
casas que tem o retrato pintado”.
O retrato pintado se
popularizou no interior por substituir as fotografias tiradas em estúdios. De
uma simples foto 3X4 se criava uma imagem que representava o sujeito. “É o
desejo de se mostrar da forma mais bonita“, resume o fotógrafo.
“Ela se popularizou no
interior porque as pessoas não tinham como pagar um fotógrafo profissional”, justiça
o fato de as paredes das casas no interior serem encobertas por retratos
pintados. “Eu acho interessante, a ‘fotografia’ passa pela sensibilidade do
Júlio, de criar o desenho das pessoas para o papel, de interpretar o que querem
e usar sua arte pra deixar as pessoas felizes”.
Apesar de ainda existir desvalorização das obras dele, existem
públicos fiéis, “por mais que hoje pareça coisa de gente cult,
o pessoal de São Paulo fica louco né? Mas ele nasceu do popular”, explica
Tiago. E são as famílias do interior que continuam com os costumes e tradições
de ter uma fotopintada.
“Até hoje eu trabalho com os galegos (homens que oferecem o
serviço porta a porta), eu não tenho acesso ao consumidor final”, Júlio explica
o processo deixando claro que o trabalho produzido é passado diretamente para
os revendedores.
Reconhecimento|
“Hoje eles são mais que irmãos
pra mim”, assim o mestre explica a importância dos amigos Tiago Santana, Cristiane
Parente e Luis Santos no reconhecimento da sua arte pelo Brasil e o mundo. “A
Cristiane Parente ressuscitou a classe, foi ela que me apresentou pro mundo”. Cristiane
é socióloga e sua tese foi sobre retratopintado.
Tiago Santana tambem trabalhou
no filme ‘Retrato Pintado’ de Joe Pimentel. Com o filme, Tiago conta que as obras do
retratista tiveram mais exposições “O Júlio tava meio esquecido, não tinha
muita visibilidade e o filme deu uma visibilidade muito grande”. E em parceria
com o tambem fotógrafo Luis Santos criou a exposição ‘Fotopintura Contemporânea’,
que em 2010 foi para a China, no Festival Internacional Pingyao Photography.Além
dos trabalhos que estavam sendo desenvolvidos, foi publicado um livro “Júlio Santos, mestre
da Fotopintada”, que possui ilustrações e conta sua historia de vida.
Nos meses de setembro e outubro, as obras do artista estavam em
exposição na Pinacoteca de São Paulo. E em dezembro parte para a Europa. “Em
dezembro agora, eu tô indo pra Espanha levar essa exposição pra lá”, fala
animado Júlio.
A
fotopintura que parecia ter um fim anunciado se reiventou, “Eu acho que vai
continuar viva por muito tempo ainda, vai se transformar como está se
transformando no trabalho do Júlio, nesse sentido ele tem o desejo muito grande
de dar continuidade com oficinas e uma escola de fotopintura”, explica Santana.
Tanto que apesar das transformações e mudanças, das novas
tecnologias estarem em evidência, parece que a fotopintura não vai desaparecer,
Julio não ver ameaça nelas e fala que fotografia é fotografia da mesma maneira,
apenas modifica o equipamento.
O fotógrafo olha a fotografia de outra maneira, “Hoje
as fotos são tão fáceis de captar, mas tambem tem uma facilidade muito grande
de cair no esquecimento, de se perder” e fala que o diferencial do trabalho do
Júlio é o resgate da memória.
Não somente um momento para
se guardar, mas um ritual, do momento que se faz a fotografia, a explicação que
se dá, os detalhes, a escolha do palito, e o desejo de ficar mais bonito,
juntando tudo isso à delicadeza e sensibilidade de um homem que entende o sonho
do seu modelo. “Eu vivo pro meu trabalho”, conclui o mestre.
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